Por Anna Karenina - 4085.BA
Pra quem teve a oportunidade de baixar o Cd e ouvir as músicas calmamente, absorvendo e interpretando cada verso e arranjo, pôde adentrar no universo simbólico de linguagens que constituem essa notável produção. E é notável porque é autêntico, tem personalidade, raízes e como uma das letras explica, “minhas raízes não me prendem, me dão sustentáculo”.
Podemos dizer que se trata de uma produção legitimamente nordestina, com sua identidade afirmada na cultura dos instrumentos aí tocados, da sutileza de dedilhados, da ferocidade das letras rasgantes e escarlates, e sim, necessárias. Um sacolejo na alma para a reflexão, sabendo-se das visões aí lançadas e refletidas. Podemos dizer que se trata de um suingue dançante, negro e embalante, visionário, apocalíptico e de fé.
De crítica social, as faixas do disco lançam-se contra o esvaziamento do olhar homogeneizado, despontam no chamamento para uma abertura de pensamento, de idéias e valores de comportamentos humanos na atual “hipermodernidade”?, e, principalmente, configuram sátiras e humores da hipocrisia existente nas atuais estratificações sistêmicas, ao mesmo tempo que se comunicam com elas.
Nessa aldeia global, onde as fronteiras do local, regional e do mundial se rompem, a obra ao mesmo tempo que imersa no universo, apresenta suas expressões culturais fundamentais- com destaque para a religiosidade afro– não só na sonoridade dos instrumentos, mas na pegada do rap e seu conteúdo, do sotaque das expressões vocais, marcando uma produção muito unida com a linguagem territorial do nordeste.
Ou seja, carregada numa compilação construída de lugares, idéias, pensamentos e valores, o disco d’OQUADRO vela sua autenticidade, comprovada e ancorada por sua identidade - ainda que plural, porque abriga pessoas diferentes, na vocação de produzir artes diferentes, mas que reunidas, emerge da unidade de ser OQUADRO – um quadro que se desprende da parede sobrevoando universos. E é nesse sentido que a obra se torna interessante, um passeio social e visionário de artistas negros saídos do Sul da Bahia, para o mundo, com a poesia instrumental e do poder da palavra, olhando de dentro para fora e de fora pra dentro, o exterior e o interior em tempo real, cristalizando os insights, os instantes, em arte, reunida na imersão multicultural do mundo moderno, resvalando em sentidos, símbolos e visões, muitas vezes ancestrais.
Letras e flechas
Algumas idéias contidas nas letras do disco, em seus versos, discorrem, por exemplo, uma crítica ao sistema, sobre a americanização da cultura e dos hábitos de consumo do brasileiro, como podemos perceber em “Balançuquadro” na voz do Mc Rans Spectro, revelando a necessidade de um desprendimento de certos conceitos para a aspiração de uma outra realidade. Aliás, a concepção de desprendimento acompanha praticamente toda a obra.
Em “Evolui”, novamente um discurso de crítica à alienação sistêmica se forma no rap de Nêgo Frezz: “(...) máquinas, fantasmas, produzindo ilusões, que aparentam ser nítidas impressões, que levam a crer: mundo resumido, indivíduo cortando controles, possuindo controles, atores mágicos, ilusionistas, e o caos prossegue a mística, apocalipse, lei do retorno”. Em seguida, destaque para os versos do Mc Jef: “eis a evolução como consequência da auto revolução, fé em Deus, dê a mão e siga em frente correntes se quebrarão e portas se abrirão, naturalmente. Orgulho é merda, dinheiro é merda”.
Todo o conjunto pode ser visto como um chamado para o despertar do sono profundo, como podemos exemplificar em “Tropeços e Percalços”, que em sua introdução grita: “Acooooorda humanidade”. É um chamado de avante, um apelo, uma aclamação inquietadora, ao mesmo tempo um desabafo inevitável, “senhoras e senhores telespectadores, escravos do novo mundo, do universo ao fundo, de um abismo profundo. Minha mente como escudo, longe daqui, distante disso tudo, hipocrisia se alastra, guerra aqui, guerra na África, controle de população por códigos de barra”, e por aí vai.
Em letras como “Valor de X²”, vemos as aspirações do ser humano ligadas à necessidade do dinheiro associada a uma noção de felicidade, mas que no desenrolar da letra retrata um pensamento mais racional que não se vê tão agarrado com a materialidade do dinheiro para a realização da vida.
Sem dúvidas, o álbum reflete uma caminhada de mais de 15 anos da banda OQUADRO e representa a concretização de algo que nasceu da necessidade da expressão artística. Cada música carrega seu traço especial, sua singularidade. Destaco as músicas instrumentais, “Sapoca Uma de Cem” e “O Soco”, de compilações muito boas.
Deixo “Fogos de Artifícios para o Precipício à Vista”, na voz de Ricardo Barreto, para comentar por último, pois melodicamente foi a música que mais me cativou, no tratamento dos versos e de sua sonoridade. Entendo a mensagem como uma oração de desmanche para as cores que destoam no caminho da vida, a idéia de “não abandone o barco” me remete a pensar sobre a não desistência do percurso.
A leitura que faço do disco d’OQUADRO resulta da ótica lançada de quem por dentro dele (d’OQUADRO) enxerga e vive inúmeras realidades, esfacelando suas arestas, mas que por suas linhas imaginárias apreende sua comunicação e a transmite. E esse disco é uma grande transmissão, uma grande comunicação.
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