terça-feira, 27 de março de 2012

Uma noite cultural no Salobrinho - Jornalismo Literário

Por Anna Karenina
Fulano de tal, num sei quantos anos, à aproximadamente 4 metros de altura, mexia insistentemente a fiação elétrica para o som da festa ligar, elevado por uma alongada escada. Sua imagem era interceptada por mil fios entrecruzando a paisagem noturna, estava iluminado pela amarelada luz do poste. De blusa listrada e calça jeans, com um maciço capacete branco sobre sua couraça mental, seu fulano de tal parecia apreensivo, entre barulhos estridentes de gente eufórica conversando nas mediações do Bar do Gil, no Salobrinho, em 23 de março de 2012, Ilhéus-BA. Ele estava sustentado por um cinto amarrado, de pé nas escadas, unindo seu corpo coloidal delineadamente no poste de energia! No poste de energia! Assim começa a Calourada Unificada da Universidade Estadual de Santa Cruz. E a energia tinha que voltar, as formações Manzuá e Romanegra queriam iniciar o som.
Enquanto isso, um progressive rock nas caixas mecânicas e sonoras do bar de Gil retumbavam estridentes. Vou tomar uma cerveja, apoquentar o calor que aquele temido poste de energia, que eu poderia ver explodir de luz elétrica e magnética, ou deitar-se sobre minha cabeça. Estava com vertigens, própria de quem tem labirintite, e que não tenho, mas que posso ter a mesma sensação. E ainda bem diante de uma vala, por onde passa a água da chuva misturada com o caldo dos esgotos no livre ar, lisonjeados, sempre passeiam defronte da Uesc. Este bairro Salobrinho tem alto déficit em saúde pública e saneamento básico, famílias em situação de risco, logo  diante de um centro que produz conhecimento. E logo ao lado do Cachoeira, “o Rio que chora água”, de Cyro de Matos, nosso poeta grapiúna, tantas ironias me sondavam a mente, inclusive sobre as autoridades públicas...
Entrei impetuosa no bar, destemida, porque eu sei que nessa vida, em bar, comunidade e escola, a sociedade também se mostra, e cada um é e representa a figura de si, com seus discursos sociais, humanos e espirituais. Então, não há porque agir com a sofreguidão da renúncia e do ocultamento. Tinham pessoas no espaço do Bar de Gil, personificações, observei no tempo que entrei, solicitando uma bebida. Perguntei se teria Domec, pra economizar dinheiro, aquele conhaque que bate logo um calourão, o homem confundiu com Dommus, e disse que tinha, mas não era o conhaque que eu queria. Olhei pro lado, um braço úmido apalpava no meu, era Halana, uma ex-colega de comunicação.
- E aí?, solicita, a cumprimentei.
- E aí, apertando os lábios, com um sentimento parado, ela respondeu.
- Você tem cachaça?, me dirigi ao homem do bar.
- Tem, disse.
- Cachaça de quê e de onde?, me atrevi à pergunta.
- Tem cachaça, ele parecia apressado e meio cismado com minha pergunta.
- Então deixe, disse, percebi a retaliação justificando, é porque eu gosto de saber em que alambique é feita a cachaça, pra depois beber. Traga-me uma cerveja, por favor, tentei ser objetiva. De bigode branco e boné, ele de imediato abriu a Antártica, nem me perguntou se eu concordava se aquilo era cerveja. Olhei desapontada para ele,
- Mas você não me disse que essa era a cerveja. Cerveja é Brahma, isso aí fica difícil de beber.
- Mas a gente dá um jeito nisso, disse pressionando a tampa de volta na boca do casco, vendo que não sou nenhuma caloura de cerveja e que sua investida para desafogar as Antárticas paradas não deu certo comigo. Trouxe uma Nova Schin, eu realmente então acreditei que não teria Brahma. Enquanto isso senti intervenções energéticas nas costas fechadas. Paguei, me servi, voltando para a sala de frente do bar. Pessoas de todo jeito transitavam por ali, jovens, olhares velhos, ingênuos, novos e malacos sacavam o ambiente. Mulheres de cabelos afros no black, bonitos, assumiam sua raiz, sem a agressão dos relaxamentos, escovas e chapinhas que maltratam a raiz negra com os padrões de beleza midiáticos, burros e que tentam negar nosso biotipo genético das várias etnias que compõem o Brasil.
Entre encontros amistosos que falavam sobre a produção audiovisual dos meninos do Salobrinho, no Projeto social “Pirilampo”, do comunicólogo Flávio Rebouças, frases rimáticas, indagações e entre abordagens sobre o cordel, “que vai saindo por cima da cabeça”, interagia com aquele que pesquisa as letras e linguagens e as exerce na música que produz, Makel Magô. Descobri que o músico Alan Tremedal bebia Brahma e o cara do bar me serviu Nova Schin!
- Isso me está parecendo preconceito de gênero, falei pra Tremedal. Da próxima vez, converse com o rapaz do bar, porque eu sei que você é amigo dele aqui das antigas, que ele não tenha preconceito com as mulheres, e que ele não esconda as Brahmas estupidamente geladas para os homens e amigos, mas seja camarada com todos aqueles que vêm aqui prestigiar o bar, entre risos e um pouco chateada disse a Tremedal. Compreensivo ele sorriu e entendeu minha abordagem, só não tomou as minhas dores. Risos.
Depois, já me apressando para sair do ambiente fechado, troquei mais prosas diversas, parecia que eu poderia permanecer ali, olhares de consciente coletivo eram captados e reconhecidos. Mas tranqüilo, está tudo bem... Saí, mas não foi como um parto, segui tranqüila, estava decidida a registrar no meu bloco de anotações uma narrativa de jornalismo literário e cultural no tempo real do evento. Com toda a liberdade para isso. Eu só me pontuava com o horário e a volta para casa, não estava disposta a transbordar em álcool, já faz certo tempo.
Com a energia do bar, a banda Mazuá começou, um rock massa e suave, pontuado com as pegadas de baixo de Marcelo Weber, guitarra de João Solari, as intervenções eletrônicas do DJ Danley DKid e a bateria de Mither Amorim fechava o fundo. Em seguida, as emanações poéticas nas vozes de Brisa Aziz, imponente e ao mesmo tempo suave quando preciso, seguiam junto à de Laísa Eça, lírica e com energia. Tantos elementos juntos... A dupla de mulheres trajava temas animais, não sei se pela alusão aos chamados “bichos”, os calouros da universidade, ou se pela ferocidade da época e da moda... Estavam bonitas e dançantes no terreiro.
“Só amanhã para eu me redimir”, era cantado, e um milésimo de segundo após já tocou outra música, então o amanhã chegou. Um reggae soprou na Brisa com a frente de Laísa, no tempo que Danley Dkid frenesi batia na sua mesa de som super sensível, acompanhando a arte, integrando a musicalidade. “Shi, shi, shi, shi, shi, shi”, “subamos acima”, dizia a poesia, e eu apreciando observante as performances, escriturava a paisagem. Não bastasse a alegria de poeta empolgado feito criança, uma costa suada, consciente e gelatinosa esbarrava propositadamente no braço destro, aquele que ramifica a mão da escrita, borrando o papel. Certamente isso lhe incomodava: um corpo pensante na frente do palco escrevendo literatura da realidade, atrapalhando sua atenção que devia estar voltada para a música, mas não, trabalhava para interceptar o trabalho alheio. Só queria chamar a atenção. Eu não enxergava seu rosto, não dava tempo, as palavras eram mais importantes.
Enquanto isso, eu continuava, “Iô, iô, iô!”
A intervenção artística também aconteceu em prol da arrecadação de quilos de alimentos como doação destinada ao Quilombo Rio dos Macacos, uma das comunidades mais antigas de descendentes de escravos do Brasil, localizada em Salvador-BA, no limite com município de Simões Filho, próximo ao bairro de São Tomé de Paripe. Atualmente a comunidade abriga mais de 50 famílias e as terras quilombolas vivem em constante situação de conflito e tensão, sofrendo cerco da polícia militar e entre ameaças de caminhões, fuzileiros navais e trator, todos da Marinha do Brasil, que alega ser proprietária das terras, exigindo a reintegração de posse. Há século o quilombo fincou suas raízes nestas terras e até hoje permanece. O momento ainda é de negociação e o prazo expirado para a reintegração foi adiado para mais cinco meses. Enquanto isso, diversas classes, movimentos sociais, entidades, entre artistas, sociólogos e vários indivíduos da sociedade civil tem se mobilizado a favor da permanência do Quilombo Rio dos Macacos, que tem atuado como ativistas na defesa pelo direito de vida dessa comunidade.
Dkid rasgava o som, com toques habilidosos e ritmados na mesa, enquanto Laísa anunciava a versão da banda cantando música de Luís Gonzaga, o rei do baião. Em seguida, sons de cascatas saiam pelas caixas de som e a poesia na frente do fundo. Falavam sobre profecias, signos despedaçados, guerra, arcanjos, como se tocassem o rosto. Performances dançantes como nos lugares que reconhecem a arte, choviam na boca do dragão, a insurreição, levantamento contra o poder estabelecido, e o dragão a cuspir fogo, elas, livres para a dança. A ambulância de Danley interceptada eletronicamente também canta, enquanto o rock ia pra frente do fundo e versa-vice. Rindo da ordem mundial... Uma insurreição, povo ou fogo na boca do dragão?
Mama África entrou no repertório fazendo a alegria de filhos de mãe solteira, como eu, e que dançam e cantam felizes, mesmo quando dizem “filhinho dá um tempo, é tanto contratempo no ritmo de vida de mama”. E é mesmo tanto contratempo, sabendo que mãe é mesmo o remédio doce e o sustento para o coração dos filhos se regenerarem, ainda que invisível, mãe sempre sabe quando vai chover e você que não escutou, ficou com frio porque não levou o casaco. E até que eu lembrei minha conversa com Caboco, quando falava do tempo da universidade, como é bom e que dá saudade. Ai ele disse: - No tempo em que filhinho chora e mamãe não vê. Em outro momento eu disse sem querer, “é, universidade é bom, tempo que filhinho não vê e mamãe chora, né?”. Rimos, por causa da inversão.
Dkid continuava na projeção eletrônica e eletrizadamente com seu telefone magnético, eu pensava que filho também tem tempo em tanto contratempo de mãe e de todos, o tempo dentro dos contratempos. E isso é um recado, minha mãe.
 E então o coro que aparece na música “Navio Negreiro” em um dos álbuns de Caetano Veloso, que canta assim: “que navio é esse que chegou agora é o navio negreiro com os escravos de Angola” se desprendem no som da Manzuá, assim como os tambôs e as voltas que o mundo dá, África também é rock iorubá, que vem girando de lá nas rodas que o mundo dá, hey!
E eu esqueço o nome das pessoas que talvez queira falar. Schimidel! Esse é seu nome. Não lembrei o nome de imediato, pensei sorrindo. Ele é aquele rapaz que eu esqueci de contar no  início do enredo deste conto. Ele foi quem segurava aflito a escada, ansioso para que o senhor fulano de tal eletricista conseguisse ligar a energia do som. Neste momento, parecia cerrar os dentes por dentro da boca, de cabelos grandes e ruivos, sobre os ombros e amarrados, meu ex-colega de Edição e TV, aquele que queria beber o uísque azul do pai, Schimidel, parecia ter envelhecido, ansioso, olhava irrequieto enquanto segurava a escada comprida. Esbarrou-se, olhei, falei silenciosamente no pensamento com ele, enquanto tentava continuar essa narrativa frenética. As pernas balançando, bailando para lá e para cá, como uma gangorra, da esquerda para a direita, os pés aquecidos, as mãos tênues, uma segurando o bloco e a outra na escrita cursiva e apressada, cabeça baixa.
Um rapaz de listrado vermelho entre linhas finas e brancas se aproximava como quem observava curioso, parecia me esperar parar de escrever para poder passar, levantei o olhar, ele se aproximou educado e indagativo,
- O que você tanto escreve?
- Jornalismo Literário da Realidade sobre cultura em tempo real, respondi. Satisfeito, consentiu e saiu, só queria saber e não passou, como acreditei.
Me retirei do meio fio quase como um pressentimento e me acomodei bem próxima a parede para que uma “louca?” que não largava a caneta do caderno, incomodasse menos à platéia, a seguir, estapafúrdia. E nessa que vem girando de lá, girando de cá, uma massa de gente rodava como em fila de trem dentro de uma rede coletiva, até quando que de abrupto o bonde esbarrou consciente na boca do céu de meu estômago, quase que querendo me esmagar na parede, como um golpe baixo, mas que ficou na margem da água de praia, arenoso se desfez. E nessa intensidade consciente que “vei”, voltou arribando pra lá, não pensei nada, só empurrei de volta com a mesma força que veio a massa de gente nervosa. As pernas continuaram firmes no chão, fincadas. Não bastasse a primeira investida, a roda voltou de novo para o esmagamento, e no momento da colisão, os braços automaticamente se colocaram na base quase que de uma capoeiragem para impedir que a ingratidão fizesse moradia aqui. Imediatamente, dois anjos humanos se colocaram na frente de mim, pareciam comovidos com os ataques deflagrados contra a poesia e queriam ali evitar novas colisões, fazendo uma barreira, enquanto eu tentava continuar na minha amistosa missão de escrever. O primeiro não lembro do rosto, mas o outro era um negro de cabelos rasta no pescoço, que já avistei numa manifestação cultural do Matamba Tombenci Neto, valeu brother! Enquanto isso tudo, o microfone ressoava ironicamente, “Eu sou amor da cabeça aos pés”, e sem conseguir prestar atenção no resto da letra da música, apenas o refrão me vencia. O som estava quente, eu estava quente. Foi nesse momento que topei com Rafael Pin da banda grapiúna de rock, Tia Tereza, e ele queria saber também o que eu fazia, contei.
Dkid lançava na dimensão sonora suas naves espaciais como um boomerang, introduzido áudio cosmológico na cabeça da gente, aumentadamente.
De repente é cantado que se acende “uma vela para Deus e outra pro diabo”. A mesma frase entristecida que ouvi de um primo sentado à mesa, num almoço, família reunida. E então dá vontade da escrita jazer, com a vontade de apenas deitar no bosque e dormir. Deixar apenas que a metafísica faça a sua parte. Mas a versão da música “Meu Maracatu Pesa Uma Tonelada” de Chico Science entrou em atividade com a Manzuá, momento que encontrei com Mila Carillo, sorridente, cabelos presos e óculos estiloso, comunicavam junto à sua vibração alegre, ela me mostrava à presença de meu primo Júlio, eu o havia chamado para a manifestação cultural.
Nesses ínterins, entre comunicações interpessoais e com os olhos voltados para a observação, surpresas agradáveis e ruins se mesclavam, no tempo em que se apresentava um rapaz, de cabelos grandes, camisa quadriculada, com parte das costas à mostra, ele exibia sua tatuagem que plagiava a idéia do desenho que Leonardo da Vinci fez do Homem vitruviano, dentro de um círculo. Na tatuagem, ao invés da frente humana  e fiel ao desenho, se exibia dois homens despidos, ambos de costas, um à frente do outro, na mesma reprodução de da Vinci, só que inversamente.
Eram tantas leituras e tantos signos, que muitas vezes eu não enxergava o rosto de ninguém, apenas identificava num meio anônimo os espectros das pessoas que reconhecia. A acidez de certos comportamentos, de determinadas comunicações chegavam a querer corroer a escrita viva, mas que ainda meio amarga, precisava se fazer. Ler as pessoas, se ler. Ler os ambientes, entender o mundo e passar no processo de modo consciente, ainda que num ritmo diferente da dança impressa. Entendi, definitivamente, o mundo sígnico de então. O que se queria comunicar. E não podemos ficar em casa, pensei, nesse momento uma ventania apaziguava o calor do amargo traduzido nesse instante.
Chegou à hostilidade, e então eu lembro agora daquela música de Bob Marley, de “amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais. As recordações, retratos do mal em si, melhor é deixar pra trás”. E é preciso sim como diz a música cantada, “Faca Amolada”, “deixar a sua luz brilhar e ser muito tranqüilo, brilhar, brilhar, acontecer, brilhar, faca amolada, irmão, irmã, irmã, irmão de fé, faca amolada”, para que se faça tudo amoladamente, não se deixe resquícios para os restos e as dúvidas, e que toda verdade traga a justiça da devida paz após a noite escura.
Me retirei da cena da frente e fui me dedicar a interagir com amigos, tomar uma cerveja gelada, apartada do rebu cultural cheio de gente. Conversava com um amigo, estudante de Engenharia Florestal, que me dizia sobre os movimentos de translação da Terra... De que em algum país (que eu não me recordo qual) a posição do Sol em relação às pedras, d’onde era observada durante milhares de anos, o trajeto já não era mais o mesmo, exibindo uma trajetória diferente nos dias atuais. Esses argumentos foram para reforçar a atual condição fora do eixo do planeta Terra. Como eu já sabia e constatava na vivência e observação da vida humana, tão planetários!
E no fim deste enredo todo, no verso de uma das últimas músicas cantadas pela Manzuá, ainda pude escutar que “não nascem flores no deserto”.  Em seguida, a banda Romanegra começou, mas meus créditos narrativos já haviam se exaurido. Toda a vivência valeu e bastou.
No caminho de retorno para Ilhéus, um paredão de estrelas noturnas sobre intenso vento forte na cara, me recompunham da atmosfera à superfície terrestre. Cheguei de volta.

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