A banda OQUADRO solta o verbo sobre a música que exercem e na mesa do Bataclan, em Ilhéus, desvelam sentidos e visões que tem de si mesmos, do hip hop, da negritude, e da arte.
Texto: Anna de Oliveira
Fotos: Arthur Maroto
Uma hora antes que o dia virasse, e maio chegasse ao seu último domingo do mês, portas altas e de duas bandas, interceptadas por movimentações humanas pairavam a ante sala do show. O Bataclan, em Ilhéus, desta vez regado a sonoridade formidável de OQUADRO, me apressava a saborear a cremosidade de um chopp e a sentir a instrumentalidade da música destes homens. Destes que transportam em sua arte a expressão da raiz de uma cultura que atravessa o tempo, e se atualiza viva, soando ritmo e harmonia aos sentidos do corpo e da alma.
Nesses instantes sublimes de absorção cultural, tudo começa a partir de uma geração descendente dos Estivadores de Ilhéus, representada pela presença de dois integrantes d’ OQUADRO, Ricô Santana e Victor Barreto, no Bataclan a exercer sua música com a banda. Esse cenário representa uma história que já fora encenada pelos atores sociais de uma dada sociedade e época, onde certamente muitos Estivadores conviveram neste universo sociocultural e político. “Existem estereótipos que tentam colocar sobre o negro, na própria história de Ilhéus. Eles também têm sua história que ainda não foi registrada. Sabemos da importância que vários tiveram e o fato d’ OQUADRO estar tocando no Bataclan aqui hoje, tem um grande fundamento”, explica o Mc da banda e filósofo, Jef Rodrigues. Hoje, o Bataclan se reconfigura com manifestações culturais pós-modernas, e cria novos significados através de gerações e gerações que participam da construção de uma nova cena.
Nessa viagem do tempo, uma melódica harmonia dos instrumentos, que de mãos negras saem sons flamejantes, senti estática e sentada a alma bailando por dentro. Das mãos de Ricô com suas linhas de baixo, as mãos de Jax na percussão e o berimbau, inquietos dedilhados de Rodrigo Dalua com sua guitarra falante, no tempo das baquetas em pratos metálicos da bateria de Victor Barreto, somavam a música eletrônica no pano de fundo, por vezes de frente, arranjos formidáveis de se ouvir. Uma experimentação que trouxe sentidos do jazz, dub, afro, bossa, rock, e algo que possa ser entendido como expressão musical contemporânea baiana.
O show instrumental d’ OQUADRO mostra como essa vertente de produção convive harmoniosamente com o hip hop, linha de frente da banda, sem que ambas se choquem e disputem o espaço entre si. A linhagem experimental traz à tona toda a espontaneidade e coloca em cena a livre potencialidade e anseios dos músicos que as exercem.
É uma das bandas mais antigas de hip hop da Bahia com suas raízes na costa do cacau, em Ilhéus. Com mais três Mc’s (mestres de cerimônia), Jef Rodrigues, Ivanigro Santos e Rans Spectro, OQUADRO há 15 anos tem produzido hip hop numa linha autêntica, no passo em que o olhar libertário quando lançado sobre o mundo e a realidade, resvala em esferas sociopolíticasculturaisespirituais e, quase sempre, de protesto.
O grupo expandiu suas atividades pela Bahia nos últimos quatro anos, com várias manifestações, muitas realizadas em Salvador com o apoio e incentivo cultural do Estado. Esse trajeto se iniciou em 2008 quando se apresentaram no Teatro Castro Alves, em Salvador, sendo a primeira banda de hip hop a estrear essa proeza. A partir daí, um tempo favorável de apresentações, projetos, carnaval, documentário e participações, não cessou de correr, ao contrário, longa vida de muita música e atuação é para onde o vento parece estar soprando para OQUADRO, próprios de um currículo admirável e de quem exerce a arte com força. “A gente quer expandir mais essa coisa do hip hop, apesar da nossa função é fazer uma música que a gente gosta. E é mesmo, porque gosta mesmo”, explica o baterista Victor Barreto. Para o percursionista Jax, o convívio entre os amigos, antes mesmo da banda se formar, foi fundamental para fortalecer e amadurecer o grupo dentro do exercício da música.
Se riqueza artística fosse diretamente proporcional a reconhecimento e respeito da cultura local de um povo, o público de Ilhéus jamais poderia deixar de prestigiar o trabalho deles. Infelizmente a maioria dos olhos da cidade, a começar pela juventude e pelas representatividades políticoculturais, ainda passa ensurdecida para uma música que representa parte de sua própria cultura. “O respeito que as pessoas têm lá fora da gente é maior do que dentro. Às vezes o mundo lá fora está com a cabeça bem mais aberta para o nosso som”, comenta o baixista Ricô. Victor Barreto acrescenta, “parece que as pessoas não estão usando a internet pra o que ela pode ser utilizada. Eu acho que é meio preso, as pessoas estão preocupadas com outras coisas, banais, não com cultura, não com coisas legais, e não levam a sério o trabalho do brother do lado. Falta respeito, educação”.
No entanto, existem em Ilhéus iniciativas culturais que valorizam manifestações alternativas e abrem espaço para a cena underground, a exemplo disso, o Chocolate Groove. Evento que lotou o Teatro Municipal de Ilhéus e mostrou que existe sim um público que tem sede de mais cultura mas que ainda precisa de mais espaços como este.
Hip Hop e Identidade
Grande parte das produções musicais saem das linhas de baixo de Ricô, que exerce influência decisiva nesse processo, no tempo em que a composição das letras vai sendo esculpida com todo o arranjo instrumental, até que a música esteja completa, “como duas retas paralelas que se encontram no espaço”, reflete o baixista. “A gente cultua o baixo, é uma coisa importante na fundamentação dos ritmos da arte africana. Para nós, o baixo é uma extensão do tambor”, define o Mc Jef.
Os sentidos e significados das linguagens na música, que só a combinação dos arranjos pode expressar, revelam o lugar de identidade comum através da arte, d’onde eles residem ideologicamente. Esse processo é constante de inovações, ressignificações e combinações, através do encontro com o novo, no que ainda está por vir, como exemplo, a composição do primeiro disco da banda.
“Isso é bom, essa abertura pra novidade, pras coisas novas que a gente está absorvendo. Temos muitas músicas que tocamos em nossos shows, mas como estamos no processo de composição de músicas novas, muita água tem pra rolar ainda”, afirmou Jef. O disco deve estar sendo trabalhado a partir de novembro, e de acordo com o baterista Victor Barreto, participações especiais podem surpreender a muitos, a presença de Buguinha Dub (PE) na produção e gravação já está confirmada.
A música d’ OQUADRO, que parte de uma visão independente, expressa de modo natural as leituras de mundo que os próprios compositores fazem pela sua livre poesia. “A música indie, que é o que a gente faz de alguma forma, é o indie tanto artisticamente, quanto mercadologicamente. É preciso entender a linguagem de cada um, você é a arte, você é produto”, explica Jef.
Os discursos refletem o olhar que eles têm enquanto negros, descendentes de um processo cruel que marcou a história da humanidade, situados no universo. É partir das experiências de vida dentro de determinado contexto de absorção, que eles na forma de se comunicar pela música, manifestam as próprias ânsias e sentimentos, ao mesmo tempo em que os sentidos de identidade cultural se fortalecem e se transformam. “O importante é nosso olhar sobre nós mesmos. Isso que é mais importante, a gente sabe da amplitude, do fundamento do núcleo disso daqui. E essa amplitude está na própria idéia de hip hop. As pessoas se limitam a idéia de hip hop, isso é uma coisa muito grande, muito universal, muito infinito”, reflete o filósofo Jef.
Para o baixista Ricô, a discriminação é uma realidade, “porque tem todo um processo histórico aí, em que dos descendentes dos descendentes dos descendentes, nós somos. Ainda tem muito sangue pra lavar na região. E é por isso que a cidade não anda, espiritualmente falando”.
As noções do tempo presente e de pertencimento que permeiam o imaginário coletivo desses artistas emergem na singularidade com que sentem o real, e na arte lançam os olhares que têm do mundo.
“Essa idéia de que ‘o Brasil é um país de várias raças, onde todo mundo é misturado’, é mentira. Entendo isso como jogada de marketing. Misturado nada. Mentira. Você vai lá na Conquista, na Jamaica, não tem ninguém misturado lá. Todo mundo sabe quem é que está lá. Você vai na Sapetinga, ou no Jardim Atlântico, e você sabe quem é que está lá também. Não tem ninguém misturado. Ninguém está lá”, explicou o baterista Victor Barreto. Para ele, o controle da informação pelos meios de comunicação, que por sua vez a maioria brota de berços políticos, é uma forma de tentar manipular a visão que as pessoas têm a respeito, por exemplo, da questão étnica, entre outras tantas questões.
Nessa contra mola que resiste, o mundo hoje embora permeado por vias distintas de forças, entre o capitalismo, a espontaneidade das relações, até onde se podem ser espontâneas, a história social que se faz todos os dias, a natureza que interage no homem e no mundo, cristaliza texturas e contrastes que de um modo ou de outro, empurra socialmente determinadas camadas pra cima, e outras pra baixo. Tudo dentro de um sistema burocraticamente complexo e ao mesmo tempo limitado demais para absorver a simplicidade horizontal e natural de ser humano, que está muito além do sintético e emborrachado. Nesse meio, todos os grupos sociais se condensam em estigmas plurais, conseqüentemente, para comunicar suas ânsias e se situar no universo diante da sede que têm na vida, seja de que ordem for.
Assim, Jef traz sua visão que tem sobre o afropunk, um movimento de descendentes africanos no Brasil e Estados Unidos que parte do princípio da autonomia, do “faça você mesmo”, em forma cultural alternativa aos modelos vigentes da sociedade. “Esse preto, é o preto diferencial, que está ligado em Spyke Lee, tanto quanto Zumbi. É um preto que lê, gosta de vinho, de vinil, que gosta de música, vai ao teatro. Mesmo com pouco dinheiro, ele sabe muito bem o lugar que ele quer ir. É um preto que sabe a informação de beber, que tem conhecimento e faz a diferença no lugar que ele está”, reflete Jef. Victor Barreto completa, “é mal visto pela própria elite, que não entende aquele tipo de arte, que não entende Spike Lee”.
Eles falam como quem tem propriedade do que estão dizendo, como uma autoridade, e que embora por vezes incompreendidos, transcendem as paredes do quadro e como um som ritmado, discursos saem voando chegando do outro lado, do mundo. Citam nomes como Michael Jackson, James Brown, Bob Marley, Jimi Hendrix, Chuck Berry, Cartola, Van Gogh, Quentin Tarantino, John Fante, entre outras referências mundiais.
“Porque a gente acabou criando um desprendimento de valores e determinismos pra cultura. Isso é quebrar preconceitos, o que fundamenta a arte que a gente faz. Isso não nos tira da realidade de onde a gente vem. O regional, o local, a negritude, a África, a gente vem nessa conexão de o que a gente olha, de onde a gente vem, do que a gente está vendo no mundo, que resulta na nossa arte. Nós somos de Ilhéus, mas somos negros de Ilhéus. Na parabólica, na internet... Não há limite mesmo, acho que o ser humano grande quando ele quer ser grande, ele tem que ler os grandes, pensar grande. Mesmo os grandes que não aparecem. É preciso ir nos grandes que a Globo não mostra. E como negro eu preciso ser referência para os meus”, como um rasgo Jef fecha o seu discurso desprendido.