Por Anna de Oliveira
annakdeoliveira@gmail.com
Fotos: Julay Photodesigner
O dia 23 de abril, sábado de aleluia, não saíra de meus pensamentos, e também dia de São Jorge em Ilhéus. Embora eu já estivesse conformada com o travesseiro de minha cama, em nível oficial aqui no planeta Terra eu não iria para o show de Seu Jorge. Mas alguém lá em cima mexeu seus pauzinhos para que o que se estava aparentemente consumado, se transformasse em uma das melhores coberturas jornalísticas que até então já experimentei. Eis aqui o novo jornalismo, com seu caráter narrativo literário e ao direito minucioso dos detalhes – o jornalista vive a realidade e narra com seu discurso livre e de dentro da alma, o acontecimento. Aviso aos navegantes que é para quem gosta de ler. É que nem um bolo gostoso, a melhor parte é o recheio.
- Tenho uma surpresa para você, disse minha mãe eufórica assim que cheguei em casa pouco mais que as 23 horas.
- Boa ou ruim? Preocupei-me.
- Boooa! Entre risadas ela me aliviava um possível susto, os nervos a flor da pele. Nossa prima ligou, disse que está com enxaqueca e tem duas entradas para o show do Seu Jorge. Perguntou se nós gostaríamos de ir, disse minha mãe. Caridosamente, claro, ela aceitou os ingressos. Eu mal poderia imaginar que esse seria o início de uma carreira que por tantos anos ensaiei os passos na graduação de jornalismo.
- Vamos logo então nos arrumar, está marcado para que horas?, indaguei.
- Aqui no ingresso diz que é às 22 horas, mas você sabe, nunca começa no horário.
- Vá logo se arrumar e venha no meu quarto que vou fazer sua maquiagem, instrui minha mãe como se fosse minha filha, e eu como uma mãe que cuida de sua cria.
Eu quis um look irreverente, não estava a fim de calça jeans, e nem de composições comuns. Investi numa meia calça preta, em seguida uma saia preta, uma sandália rasteira fechada e também preta, mas... Uma blusa azul de manga comprida com gola interceptou a paisagem, dando aquele ar invernil, como o céu frio de um recém cair da tarde, que logo fica azulado com estrelas. Um colar de linha com botões prateados, minha bolsa de coco da feira de artesanato se encerraram com a maquiagem laranja e azul, boca pálida rosa claro e um rimel exagerado nos cílios. Minha mãe discreta com sua calça jeans azul, uma blusa preta e um batidão no pescoço, brincadeira, era só um colar prateado com medalha. Dei azul aos seus olhos, mas o óculos, como mulher de meia idade e que não usa lente de contato, bloqueou um pouco o sutil das sombras coloridas. Não tinha problema. Ela continuava linda com seus olhos verdes de mãe.
Saímos às pressas e como quem gostaria de ter parado em todos os sinais vermelhos, insisti,
- Pisa minha mãe, vai parar em sinal uma hora dessa para quê? A rua está vazia, se não vier carro, passa direto.
Mas na sinaleira da Ceplac uma fila de carros lerdos no semáforo, só pra contrariar minha inspiração. Ainda tive que a ouvir dizer que estava certa, mas eu não iria entrar no mérito nessa altura do campeonato. Estacionamos, e fomos logo para a porta de entrada. Na fila, duas passagens, pista e área vip, quando olhamos no ingresso, constavam ‘área vip’! Uau! Quanta exclusividade! Pisamos os pés na grama da Concha Acústica e em alto e bom som o apresentador anunciava por volta de meia noite entusiasmado:
- Seeeeeeeeu Joooorgeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee!
- Uhuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu, fazia a platéia.
Eufóricas, saímos apressadas para frente do palco, e logo de cara víamos aquele homem negro e alto, de blusa cinza com estampa de braços de guitarras e baixos, tinha também violão na blusa dele. Uma calça jeans seca e básica, all star, óculos escuros na face e uma energia de contagiar o coração. Enérgico ele chegava com sua cadência, seu rock e sua barba. Era samba rock, fazia, um ritmo dançante que empurrava os pés do chão para cima, com alegria ia arrancando aquela marra de algumas caras fartas, ilheenses natos.
Ao longo do show do Seu Jorge, conhecidas letras tão decoradas na ponta da língua no coro da platéia, contaram com arranjos musicais de muito bom grado aos ouvidos. Sua voz potente chegava com toda força, arrepiando o fio dos cabelos de nosso corpo. Foi um show de emoção, emoção transbordada dos instrumentos que se espalhava no ar, no chão, elevando a vibração de todos e das caixas de som, na direção de meus ouvidos. Estes ficaram felizes com as performances dos grandes músicos que compunham a banda, dando um show instrumental, de violino, gaita, guitarra, teclado e instrumentos de sopro, entre outros. Durante seu repertório, canções de Jorge Ben como “Chove Chuva” e de Tim Maia “Casinha de Sapê”. Elas intercalaram com as suas músicas, e outras composições de marchinha ao final do show, que trouxeram toda a irreverência e bom gosto de um músico e de toda uma equipe de produção. Eles fizeram desse 23 de abril, o sábado de aleluia e dia de São Jorge, um dia mais animado para os ilheenses que assistiram a apresentação.
La pras tantas acanhadas latinhas, as pernas já quentes caiam na cadência de um samba, de um pandeiro. Pandeiro discreto, mas com mandinga, marcação e aperreio, batia com gosto o compasso do negro, e ele me via, ele sorria, e eu distraída peguei seu olhar, ele sorrindo o meu remelexo. Em sinal positivo, balancei a cabeça, ensaiei um samba de roda no ritmo de meus pés. Dessassosegado, Quininho da percussão virou o rosto, disfarçou o olhar indiscreto e certo.
Encontrei com um amigo de minha mãe, amigo das antigas de família, ele tinha acesso ao camarim. Vou pedi-lo para colocar-me em acesso aos artistas e vou entrevistar o Seu Jorge, mas não trouxe gravador, lembrei. “Não precisa de gravador, está tudo na mente”, lembrei da máxima de um amigo, irmão, jornalista, ele tem bom coração. A tecnologia deixa os seres humanos mais preguiçosos. E se fosse ao século XV, como eu poeta, iria cobrir os concertos da corte se dependesse de mp3 para gravar?, pensei.
Meu amigo disse que ia dar um jeito de me colocar lá dentro, que eu o aguardasse próximo do bar. Mais duas latinhas guti guti para agradar aos ânimos, fui chamada para a porta de acesso da parte interna das vans e camarim. Foi um aperta aperta, fãs se indignavam com minha presença, ‘cortando a fila’ entre aspas. Sou jornalista, só não tenho uma credencial, vou convencer o segurança; meu amigo se esforçava, mas não conseguiu logo me colocar. Empurra daqui, empurra de lá. Depois de entra e sai de pessoas que na camaradagem entravam e conseguiam transitar, pensei, “eu também vou entrar”. Chegou um grupo da produção que veio entrando, passando e eu agachei-me, como uma criança peralta, cortando pernas de adultos, e de cabeça baixa. Rompi e me saltei pra frente, já foi! Tô dentro! Quando logo providenciava uma caneta e um papel para anotar minhas inquietas perguntas, o segurança me segurava no braço, dizendo com veemência que eu violei a entrada, que eu estava errada, que era pra eu retornar. Mas eu já dentro, com olhar de coitada, hahaha, implorava o homem pra ficar, dizendo que ia entrevistar o cantor, que estou fazendo a cobertura pro R2CPRESS, de meu tio Rabat. Ele não me ouvia, mas meu amigo intercessor conseguiu falar com a mulher que dá a voz de poder, pode ficar!, ela salvou.
No meio das graminhas frescas e verdes, observava as pessoas, inquietas, afobadas pra falar com Seu Jorge. De repente, vejo Junior Gaiato, o da gaita e do violino, parabenizei-o, ele e toda equipe pela apresentação e ele me disse que é do Maranhão.
Logo depois, meu amigo influente me chama, me coloca pra dentro, “pode deixar ela entrar”, falou com os seguranças. Subi umas escadas com vários contra regras e cheguei ao alto do palco, olhei pros lados, mas não vi nenhum Jorge. Desci as escadas, e encontrei em meio a um labirinto branco, entre salas e paredes apertadas, um rasta alto e parrudo, com cara de cachorro bravo. Mas no fundo parecia inofensivo. Não vou subestimar.
- Qual o seu nome?
- Celso. Nu e cru respondia com secura minha despretensiosa pergunta.
Nesse meio tempo pude ver atrás dele, uma sala com cadeiras, conversas altas e risadas, avistei o Seu Jorge com os outros integrantes da banda. Mas antes aliviei minha apertada bexiga e em passos de ovos fui em outra sala, pessoas conhecidas e ansiosas, nada mais. De volta ao dread cara de bravo, ele era uma muralha ambulante na porta da sala. Em seguida um mais simpático rapaz se aproximava, perguntava o que eu queria. Me apresentei, e disse que iria entrevistar o Seu Jorge quando ele pudesse, apenas 6 perguntinhas. Pediu que eu aguardasse, no momento ele me comunicaria. Paciente esperei, e ele me conduziu para uma sala, nesse emaranhado todo encontrei com Quininho, o percussionista que me olhava e dava risada. Troquei poucas palavras. Mas logo depois uma movimentação agitada, pessoas falando, flashs, sorrisos e fotos. Era o Seu Jorge, puxei o Quininho para sairmos na foto.
- Como que a gente vai sair assim, na foto dos outros?, ele queria me censurar.
- Ah que nada, besteira, deixa isso para lá, terminando a frase sorrindo e posando do seu lado, adrenalizada.
Todos se retiraram da sala, e o rapaz da produção, Pierre, no qual educadamente atendeu meu pedido, colocou Seu Jorge sentado numa cadeira plástica vermelha de bar, e ao lado outra para mim, eu jamais poderia imaginar. Me apresentei, e já comecei a conversar. Deixei os elogios para o final – não lembro de tudo detalhadamente, do que ele falou exatamente, mas como “tudo está na mente”, absorvi a mensagem. Eis aqui o que se passou:
R2: “Por que você tirou o seu dread”? Era uma pergunta incomoda e inquieta, coisa que eu sempre quis saber, aqueles dreads dele rústicos com sua voz retumbante, uma expressão raizera. Mal pude acreditar quando vi o ícone da MPB sem os dreads, não entendi nada. Lembro que foi num momento em que as Lojas Riachuelo o contrataram para sair nos seus editoriais de moda.
Seu Jorge: Por uma questão cinematográfica, de fotografia, respondeu com tranqüilidade. Seus olhos grandes se mexiam e os meus acompanhavam a dança de suas pálpebras, abrindo e fechando.
R2: Poderia dizer que o samba rock é o carro de frente do seu trabalho?
Seu Jorge: A gente faz muitos trabalhos, e tem muitos trabalhos por aí, com vários artistas. O samba rock é um estilo que agrada a platéia, que ela pede, e por isso fazemos.
No meu inconsciente algo me sugeria e inclinava que o samba rock teria sido uma investida da indústria cultural da música, apostando no estilo para o mercado dar seus frutos e lucros. Até citei a Maria Rita, que teria começado sua carreira com uma roupagem mais exótica, musicalmente falando, conceitual, mas que depois migrou para o samba, se afirmando no estilo e prosseguindo a carreira nessa linha.
R2: O samba rock teria sido uma abertura do mercado em que vocês resolveram apostar, como fez a Maria Rita? Manifestei meu inconsciente.
Seu Jorge: Não é uma questão de mercado, não somos muito ligados nisso, se o público gosta, nós fazemos. Temos músicos como Jorge Ben, Jackson do Pandeiro e Roberto Carlos. Ele citou esses artistas, como influências importantes na composição de sua obra e arranjos.
R2: Vemos que você apresenta em seu trabalho muitas composições que abordam a questão social do nosso país, do trabalhador brasileiro, como também a música Brasis, que aborda nosso quadro social. Como você vê o Brasil de hoje?
Seu Jorge: De uns seis anos para cá se pode dizer que o Brasil tem experimentado um momento de desenvolvimento e vive essa fase junto com o mundo. Conseguiu melhorar muitas coisas, isso pode ser notado do lado de fora.
R2: Por causa da política internacional?, perguntei. Sua colocação me soou cautelosa demais, logo para um cara que tem suas raízes no morro, um discurso ponderado e pacífico, sem a mesma força daquela poesia “Negro Drama” que ele recitou no palco, que esta sim, eu sei, faz parte dele. Eu poderia estar enganada, e ele estivesse mesmo sendo o cara mais natural do mundo. Mas áspera tentei abreviar a conversa trazendo o termo ‘política’ para a discussão, já que sua fala me aparentava notadamente parecida com a de homens da opinião pública, que zelam pela sua imagem, não colocam o pé na jaca, não rodam a baiana, e de preferência agradam a todos e não desagradam a ninguém.
Seu Jorge: Não só por causa da política internacional em si, mas pelo próprio momento que o mundo todo vive hoje. Hoje muitas pessoas podem ter acesso às novas tecnologias, o que antes sequer poderia ser imaginado o acesso desses recursos ao cidadão comum. O Brasil tem de enfrentar ainda muitos desafios, como a educação. Mas com um ritmo contínuo de crescimento, de melhorias, do trabalho, das pessoas.
Sua boca grande interceptada por bigodes alheios mexia-se, seus olhos olhavam para fora, ora olhavam para mim, um pouco desconcertado numa cadeira.
R2: A música Hagua, um reggae, que por sinal muito agradável, aborda uma questão que traz como ponto central a água no planeta e sua escassez. Você vê isso realmente como uma necessidade de conscientização em que as pessoas precisam acordar e se dar conta? O que mais o inspirou para colocar essa música no seu trabalho?
Seu Jorge: A música fala por si. A letra é de um grande compositor, Gabriel Moura, e carrega uma poesia que tem uma razão importante para a humanidade, a água. Musicalmente falando, ela foi muito bem trabalhada por todos que participaram do arranjo, que resultou numa composição muito boa.
Eu tinha que prestar atenção em muitas coisas. Na suas palavras de respostas, na sua voz, na sua força. É impetuosa, imponente, mas é boa. Voz que consola, de cantos negros, de guetos, voz gostosa. E seus olhos, meio frios, ora arredios, desconfiados. São largos, espalhados, parecem que dão um giro 360 graus e enxergam do outro lado, da cabeça. Às vezes são rasos. Mas eu vi humanidade dentro deles, ainda que velados. Sei que “lá fora” é uma coisa, mas aqui dentro, de si, dele mesmo, tem muito mais, em profundidade de essência. A mídia, a fotografia, o filme, ou até a poesia, não vai poder expressar a verdade que tem dentro das pessoas, ainda mais quando essas pessoas são públicas, lúdicas e retalhadas. Mas eu senti alguma coisa dele.
R2: Tem uma música sua, “Mangueira”, que traz uma abordagem desse contexto social no Rio de Janeiro, das favelas. O que você tem a dizer a respeito da participação mais enfática do Estado com a polícia se inserindo nas favelas do Rio, no combate ao tráfico de drogas?
Seu Jorge: É uma nova operação experimentada pelo Estado- ele falava pausadamente-, em que a segurança é o que se busca. O importante é que o povo brasileiro seja respeitado nos seus direitos.
R2: Em contexto semelhante, você participou do filme Tropa de Elite 2, que assumiu um personagem inserido num cenário de conflitos e caos. Isso mostra um pouco de nossa visão de mundo, o papel dos personagens que interpretamos e vestimos, nos apropriando de determinados discursos. - Não teve jeito, nessa hora eu meti o bedelho expondo meu ponto de vista e tentando extrair mais sobre a alma de Seu Jorge, de sua essência, de sua raiz. Não contei conversa e fui lá e soltei o verbo mesmo, sem ressentimentos, tentando o instigar. Como foi para você participar dessa produção?, a ultima pergunta já cantava em minha voz tons de despedida.
Seu Jorge: Foi muito bom. Toda a equipe se envolveu, o diretor, todos juntos nos reunimos e planejamos a execução do trabalho, em que pudemos participar mais contribuindo nos processos das cenas, um trabalho em que todos se envolveram e foi muito positivo. É um filme que, assim como Cidade de Deus, participei e até hoje está aí presente e sendo assistido.
No final, ele ainda ressoou algumas idéias, e observei que ele pôde perceber que até então, ante eu jornalista, dentro de um sistema cruel, sou um ser humano e estava desarmada com o coração nos olhos dele, querendo encontrar o que o coração dele tinha para dizer. Não queria que o receio das pretensões maldosas de certos jornalistas, embarreirassem a espontaneidade e seu verdadeiro ponto de vista. Infelizmente muitos mass media hoje usam o discurso de pessoas públicas e artistas com questões polêmicas para sensacionalizar um fato, e com as respostas obtidas expõem a imagem dessas pessoas na opinião pública. O que não é meu caso, claro. Mas nesse mundo redondinho, vou utilizar a expressão de uma de suas músicas, “o que não falta é tatu, pra me levar pro buraco”.
R2: Quero agradecer a atenção que você dispôs a mim aqui nesse momento, te agradecer imensamente por ter me recebido e gostaria de parabenizar a você e toda a sua equipe, como comunidade ilheense, pelo trabalho e pelo show. E que apesar da linguagem sistêmica que às vezes se apropria dos nossos discursos, digo que independente disso, admiro seu trabalho como artista, como ser humano, que tem uma energia muito boa no palco, suas letras, músicas, que conseguem envolver a todos com sua arte. Por favor, um abraço?
Ele balançava a cabeça, consentido sereno as minhas palavras, com muita educação e humildade. Nos abraçamos, eu pequenina, pairava seu peito, meus braços entrecruzaram suas costelas e trapézio alto, e ele com seus braços compridos se apoiavam em meu pequenino maciço corpo. Mas meu coração falou pro dele, ai ele sentiu, ai disse:
Era como quem queria dar palavras de consolo a mim, que em perguntas educadas, eu gritava esbravejando e implorava contidamente para que ele expressasse em suas respostas o seu real sentimento, de nossa realidade social brasileira. Sua resposta, no entanto, me consolou, e me comunicou que entendia o que eu queria saber, ouvir. Mas me transmitiu em mensagem subliminar também, que nem tudo precisa ser dito. Aquilo foi suficiente, sua cautela foi perdoada embora eu quisesse que ele rasgasse o coração. Tudo está mesmo em construção, o mundo nós fazemos, nós vivemos. O amanhã realizamos hoje!